Ruínas do Queimado: símbolo da luta negra no Brasil

Monumento foi restaurado e está pronto para ser aberto à população assim que permitido

Ruínas do Queimado: símbolo da luta negra no Brasil


Texto: Gabrielle Tallon - Foto: Everton Nunes/Secom-PMS

As ruínas de São José do Queimado, importante monumento de resistência à escravidão no Espírito Santo localizado em Serra-Sede, foram restauradas e estão prontas para receber a visita dos capixabas, assim que as autoridades em saúde autorizarem a abertura de espaços com segurança, para evitar a propagação do novo coronavírus.

O trabalho de resgate do sítio histórico, uma demanda antiga do movimento negro capixaba e de toda a sociedade capixaba, foi realizado pelo Instituto Modus Vivendi, a partir de um acordo de cooperação técnica e financeira assinado entre a Prefeitura da Serra e o Sindicato do Comércio Atacadista e Distribuidor do Espírito Santo (Sincades). As obras, concluídas em fevereiro deste ano, duraram pouco mais de um ano e somaram investimentos da ordem de R$ 1,3 milhão.

O objetivo foi resgatar o monumento, um museu a céu aberto, que guarda a sofrida história dos negros do Queimado. O sítio se torna ponto de inclusão e educação histórico, antropológico, patrimonial, ambiental e cultural, tendo em vista os marcos da trajetória e da memória do Queimado. O propósito é atrair visitantes, esportistas, estudantes e pesquisadores ao local e constituir um espaço cultural público, democrático e inclusivo.

O monumento estava em ruínas, mas, após o restauro, volta a ser um importante propagador da história negra no Espírito Santo. O sítio inclui a igreja e todo o seu entorno, além do cemitério antigo e paisagismo.

Palco da Revolta do Queimado, quando, em 1849, negros escravizados se rebelaram por não receber a alforria prometida pelo trabalho de construção da Igreja de São José do Queimado, este local se tornou um dos mais importantes marcos da luta dos escravos pela liberdade no Espírito Santo.

São heróis desta insurreição Chico Prego, João da Viúva e Elisiário, entre outros negros que, na metade do século XIX, lideraram o grande levante, só debelado com reforços vindos do Estado do Rio de Janeiro. Após conter a revolta, cinco negros foram condenados à morte. Entre eles estavam os principais líderes do movimento, mas, apenas um deles, Elisiário, conseguiu fugir e desaparecer nas matas do monte Mestre Álvaro.

O prefeito da Serra, Audifax Barcelos, ressalta que a restauração do sítio histórico do Queimado tem o objetivo de preservar a história do povo serrano e brasileiro. "Queimado tem uma importância histórica para o movimento negro local e nacional. Preservar essa história é fundamental." Ele ressalta que a intenção é que o local se torne rota de visitantes. "Com a restauração das ruínas, queremos transformar Queimado em um museu a céu aberto, onde as pessoas possam conhecer a história de luta do povo da Serra".  

O presidente do Sincades, Idalberto Moro, diz que o setor atacadista e distribuidor capixaba se sente honrado com a possibilidade de contribuir com esta importante ação de resgate da história do nosso Estado. “Não faz sentido para nós sermos uma importante peça da engrenagem do desenvolvimento econômico do Espírito Santo se não estivermos inseridos em projetos de valorização da cultura e da história dos capixabas. Nossas empresas e nossos funcionários fazem parte disso e o setor entende a importância dessa entrega ao contribuir e fortalecer nossas raízes”, disse. 

Segundo Erika Kunkel Varejão, presidente do Instituto Modus Vivendi, o restauro do Sítio Histórico São José do Queimado foi realizado com aprovação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Secretaria de Estado de Cultura e Prefeitura da Serra.

O trabalho buscou, essencialmente, garantir a preservação e uso do sítio histórico. As intervenções do restauro e readequação, devidamente autorizadas pelo Iphan, Secretaria de Estado da Cultura e Prefeitura da Serra, foram essenciais devido ao desgaste ocorrido nas ruínas. Também demandaram mudanças, no projeto inicial, as descobertas arqueológicas registradas durante as obras e os itens arquitetônicos que foram surgindo com a limpeza, como o arco cruzeiro, o piso da nave, a escada, entre outros", pontua Erika.

A presidente do Instituto Modus Vivendi completa: "restauro requer sensibilidade, estudo da história, da memória afetiva e estar sempre aberto para as mudanças, pois, a partir da realidade encontrada no espaço, podemos transformar o projeto inicial em um outro, mais rico e interessante. Esse é o caso do Queimado. O local passará a viver um novo ciclo e servirá para contar a história que é sinônimo de luta e resistência no passado. Que possamos, agora, redesenhar o futuro e que esse presente nos edifique como humanos”.

Por dentro do restauro

O trabalho de restauro começou com o projeto arquitetônico, realizado pela Prefeitura da Serra há quase 10 anos. As obras, posteriormente entregues ao Instituto Modus Vivendi, começaram com a limpeza e monitoramento arqueológico do monumento. Nessa etapa foram encontrados vestígios de elementos importantes da arquitetura original da igreja como o arco cruzeiro, a pedra do átrio, o piso antigo e a escada.

A partir daí, sempre seguindo as normas internacionais de restauro, o projeto ganhou novo contorno, tornando o local mais valioso, com a evidência dos marcos históricos. Foi, ainda, reconstruído o arco do cruzeiro e, acrescentados, com aço, um elemento contemporâneo, um frontão, um mezanino e uma escada. Estes, além de embelezar o patrimônio, permitirão observação e movimentação mais amplas pelo local.

Destaque, também, para as pedras das ruínas que estão no entorno da igreja, amontoadas, guardando a luta dos negros que habitaram a região. Todo o patrimônio será acessível e sinalizado com placas educativas.

Pedras do meio da nave

As peças aqui representadas compõem um significativo elemento arquitetônico conhecido como frontão e tinham como finalidade a decoração da fachada da Igreja de São José do Queimado, em sua parte mais elevada. Cabe destacar que, dentro dos aspectos construtivos, vemos na obra a compatibilidade entre a alvenaria e a arte aplicada, onde a significativa espessura das paredes de pedra permitiu a modelagem do frontão que decorava a entrada da igreja.

Arco cruzeiro

Durante os estudos arqueológicos na igreja, foi realizada a retirada de parte do cruzeiro que havia caído. No manejo das ruínas, os arqueólogos evidenciaram a escada que dava acesso ao altar, onde também foram encontrados vestígios como tecidos ornamentais com franjas douradas, moedas centenárias, vidros de oratório, cravos do piso, moldura do painel do altar contendo pinturas e parte do retábulo. Uma curiosidade que chamou a atenção dos pesquisadores foram as marcas de dedos (digitais) em todos os tijolos encontrados, onde o oleiro marcava a sua produção com o intuito de garantir o pagamento do lote entregue. Outra descoberta importante foi o sistema construtivo implantado no arco do cruzeiro, com a preparação da alvenaria para receber tijolos maciços e tijoleiras, atentando para a forma e encaixe necessário no vão do altar.

Piso antigo

A evidenciação do piso da igreja foi realizada pela equipe de arqueologia e apresentou dois períodos distintos. O primeiro, produzido por aterro antigo, onde a profundidade percebida chegou a 70 cm do nível atual, sendo que os indícios apontaram para uso de plataformas de madeira tipo tábuas ou pranchas na circulação interna. O outro piso foi observado com aterro produzido por restos construtivos para colocação de uma fina camada de cimento queimado, com aspecto rústico e craquelado, sendo este relacionado ao final do século XX. A percepção da arqueologia teve sua base teórica nos componentes de formação dos aterros e nos vestígios encontrados como os cravos de grandes dimensões, além da cronologia dos pregos forjados de cabeça quadrada e as feições no solo provocadas por restos orgânicos da madeira.

Pedras do átrio

A entrada da igreja é um dos elementos de maior destaque na composição de sua arquitetura, sendo considerada como parte constituinte da paisagem. Cabe destacar a arte produzida nas antigas igrejas do Brasil, onde em sua entrada principal, logo acima da alvenaria, recebia um elemento decorativo chamado frontão. Vemos nos vestígios expostos dessa arte, na Igreja de São José do Queimado, a modelagem da estrutura e os trabalhos feitos na pedra. E por falar em pedra, cumpre lembrar que o especialista que esculpe a rocha chama Canteiro e seus trabalhos eram amplamente difundidos durante o período colonial, pois ele dava formas ornamentais ou estruturais para obras de todo porte. 

Paredes de pedras

Durante as escavações arqueológicas, foi evidenciada a fundação das paredes com bases reforçadas que garantiram a permanência das estruturas visíveis, mostrando o cuidado dos seus construtores. No modelo arquitetônico proposto para a Igreja de São José do Queimado, foi observada a constituição das pedras irregulares vindas de leitos de rio e depósitos marinhos, onde foram assentadas em argamassa composta de argila, areia, cal e aglomerados, introduzindo resistência e vedação. As condições e os custos da alvenaria levaram à preferência pelo método conhecido na arquitetura colonial como do tipo ‘canjicado’, onde a escolha das pedras garantiu o arranque dos blocos, intercalando as rochas maiores com as menores. Sem dúvida, esse método construtivo é percebido na paisagem pela sua imponência e robustez, sendo no Brasil uma das alvenarias mais empregadas entre os séculos XVIII e XIX. 

Sobre Queimado

Localizado a cerca de 25 quilômetros da capital, Vitória, o sítio histórico do Queimado foi palco do principal movimento contra a escravidão no Espírito Santo, a Insurreição do Queimado.

Em 19 de março de 1849, escravos da localidade de São José do Queimado, na Serra, se revoltaram por causa de uma promessa do frei italiano Gregório José Maria de Bene: se os escravos construíssem a igreja de São José, teriam alforria, mas isso não aconteceu.

Mais de 300 homens, mulheres e até crianças participaram da rebelião, capitaneada por Chico Prego, João da Viúva, Elisiário e muitos outros líderes que articularam seu povo para tomar a liberdade com as próprias mãos.

A insurreição foi um movimento tão forte que, para contê-la, foram necessárias forças vindas do Estado do Rio de Janeiro, além das capixabas.

Os rebelados foram presos e julgados, cinco deles condenados à morte. Um dos líderes da Revolta, Elisiário, escapou da cadeia e refugiou-se nas matas do Morro do Mestre Álvaro e nunca mais foi recapturado. Chico Prego foi capturado e enforcado, em 11 de janeiro de 1850.  Hoje, ele nomeia a Lei de Incentivo Cultural do Município da Serra.